quarta-feira, 17 de junho de 2009

Stand By Me

Ela acordou nesse dia de tpm. Louca, louca do juízo. E levantou da cama assim meio atarantada, meio automática, como se uma bomba naquele instante tivesse arrancado o teto do quarto e disparado seu instinto de correr sem que ela tivesse tempo de pensar pra que mesmo precisava fazer aquilo.
Colocou os pés numas havaianas velhas pretas que jamais assumiriam esta utilidade se ela estivesse em um dia comum, e arrancou o chambre tortamente pelo corpo, quase a rasgar as alças tamanha a pressa e violência ao puxá-las pescoço afora. Entrou no chuveiro instintivamente, já que não costumava tomar banho muito cedo da manhã, e sentiu que seu corpo agradeceu a água morna. Era ele, aquele seu corpo sempre tão suave, que a tinha levado até ali, ele precisava fazer alguma coisa pra controlar aquela mente à beira do desmantelo. Saiu do banho um pouco menos acelerada - vitória do organismo, inconscientemente preservando sua permanência neste mundo - e se dirigiu ao quarto.
Nada de hidratante, não estava com paciência para carinhos, tampouco os que imprimia sobre sua própria pele. Vestiu um vestido desbotado, meio da cor do seu humor, cabelos presos num coque estilo vá-se-à-porra, calçou a primeira sapatilha que lhe passou pela vista e cuidou-se de aplicar um pouco de desodorante nas axilas, porque cheiros impróprios com certeza piorariam em quantidade sua intranquilidade mental - e nesta hora foi mais uma vez o intinto de preservação que lhe falou à consciência.
Saiu de casa. Melhor dizendo, fugiu, por que doido de verdade foge, se solta, se desamarra, não simplesmente sai assim só como quem não tem riscos a oferecer a si mesmo e aos demais indivíduos.
Dentro do carro devaneou um pouco, sem que prestasse reparo em seu estado. [Importante: ela de fato não sabia que estava do jeito que estava. Não se tocava de seu ritmo, de tanto que estava acostumada a simplesmente ser em todos os momentos, sem se importar como, porque, pra que ou seja lá o que fosse. Ela era sempre o que sentia sem tomar conhecimento, e naquele dia ela era ela também, ainda mais louca.]
Começava a tocar uma música de Jonh Lennon na voz ótima de um cantor que nunca ouvira antes, e era Stand By Me, covardia do programador, "oh darling, darling stand by me... Oh! Stand by me!..." e ela se lembrou do infame da noite de três dias atrás, aquele demônio com distúrbios de identidade, que não só se fazia passar por anjo como era travestido até a pele, até os olhos, de anjo da mais alta patente celestial.
Danou-se então a balançar o corpo feito bêbada, olhos fechados apertados, cara de orgasmo, cantando a música com sentimento, uma mão no peito e a outra no ar dançando e dando mexidinhas rápidas entre os espaços da melodia, pra marcar em si as investidas da canção. Passou uma senhorinha rumo à padaria e, ao olhar a moça gravemente desincompatibilizada com a realidade, não pôde deixar de se lembrar que na juventude até a loucura mostra uma face mais bonita e menos vulgar, a velhice era mesmo uma desgraça.
E a outra descangotada, a música pela metade, e ela realizando na lembrança o puto que tinha chegado só pra lascar com a sua paz tão volátil. Era ele em cima dela, metendo a cara por seu cangote, sugando até a última nota olfativa de seu cheiro, roubando seu cheiro, espalhando o dele nela toda, se esfregando entre suas coxas, entre seus peitos, falando todo tipo de putaria mais linda e refinada, apertando sua bunda, beijando sua boca, com força, com ternura, com vontade, por pura e ingênua maldade.
Era pra ela ir à faculdade, tinha aula dali a 30 minutos com um professor que fazia juz a este título com todos os méritos, mas que não tinha cacife o suficiente pra fazê-la concentrar-se em sua disciplina naquele dia, e além do mais ele era gago, careca e combinava o cinto caramelo com o sapato da mesma cor num conjunto de camisa xadrez por dentro da calça de brim cru. Não dava. Ela não ia mais pra aula, e inclusive nunca entendeu por que homens ditos intelectuais tinham esse gosto cretino por sapatos de cores ridículas e calças de brim, devia haver algum significado oculto naquela cafonice toda. Não, uma cerveja seria mais apropriada para seu estado de espírito.
Pois bem. O bar era daqueles botequins com cara de sujo que os estudantes adoram, mas que ela não gostava tanto e nem por isso deixava de ir uma vez ou outra, aliás tanto faz gostar ou não quando uma coisa tem que ser feita. E ela tinha que tomar uma cerveja. Uma porque é assim que se costuma falar. Nenhum louco se desamarra pra sair comedido pela rua.
Quando já estava sentindo as mãos formigando e os movimentos passaram a tomar um tempo diferente do tempo em si ela começou a dançar. Sozinha, a última folha caída do outono bailando tonta e delirante, voltejando no meio do boteco e dos olhares incrédulos de dois amigos que ali dividiam amenidades e uma cerva já suada. Foi aí, numa das voltas do delíquio, já muito consumida pelo alcoól e pela crescência de algo em si que ela só sabia que era vontade, mas não sabia de quê, que ela pegou o telefone e ligou.
Nunca, nunca na vida ela aceitaria uma vulgaridade daquelas em bom estado. Mas aquele jamais fora o caso e o rapaz do outro lado estranhou quando às 15:42, no meio de um cochilo clandestino numa aula importante mas insuportável, uma voz falou meio sem separar as palavras, mas firme, que queria vê-lo.
Ele lembrava dela. Muito mais do que deveria, é bom que se diga, mas daquela voz não. Lembrava de uma criatura no limite da sublimação dando-se às mãos dele e a ele mesmo como se não se quisesse mais de volta. Lembrava do cheiro especiado de seu ventre e de sua nuca encamurçada de pelinhos aloirados e muito graciosos, lembrava da cinturinha exata e dos quadris soltos, das coxas roliças que ela possuia, bonitas, bonitas mesmo, de doer e de matar, que ele apalpava e amassava e admirava e chupava e lambia com toda a vontade do mundo, da bunda que ele procurava não lembrar em lugares públicos, lembrava da boquinha de lábios viradinhos e pequenos, do nariz antipatissíssimo, presunçozíssimo que dava a ela um ar de menininha-bem-criada-boa-de-levar-umas-palmadas, do olhar inocentemente pornográfico, dos dentes inacreditáveis que ela possuia. Mas não daquela voz.
Não, aquilo era voz de mulher desesperada que se dava ao descabimento de expor seu desespero. Aquilo era a voz de alguma rampeira que ele devia ter comido sob o complacente e desastroso julgo da bebida. Aquilo devia ser um erro que ele acabara de descobrir que jamais deveria voltar a cometer. E ela gritando maluca que estava bêbada, que estava no bar, que estava doida pra tirar a roupa e colocar a música Stand By Me pra dançar só pra ele. Imagine só. Um verdadeiro comício telefônicoestapafúrdio de carência, debilidade mental e falta de bom senso.
Ou então - lá no fundo falou mais a idealização que já estava com vontade de virar realidade - era a voz em versão despedaçada da moça que o havia encantado a uns dias atrás, na festa de uns amigos em comum.
Não que ele fosse um rapaz facilmente impressionável, ou simplesmente mais um genuíno exemplar de macho ordinariamente ortodoxo. O que acontece é que ele a havia pensado de maneira diversa da que naquele instante se apresentava. Ele engenhava a perfeita cena: ela trôpega, fragilizada, meio demente até, fazendo o melhor papel de mulher sem o menor valor, sem compostura alguma. Descabelada naturalmente, com a roupa toda amarrotada e sem saber a muito por onde andavam seus sapatos. Não. Não era assim que ele preferia vê-la, mas era aasim que aquela voz a desenhava em sua mente.
Convém ressaltar, todavia, que tampouco a imaginava uma santa prostrada no altar ou mesmo numa modalidade mais sutil de pureza e austeridade. Longe disso, é muito bom que se diga. Incabível para ele, não só por sua aversão quase patológica a moças recalcadas como também pela recordação pungente e amiúde, detalhada em pormenores, do que ela fora capaz de fazer, na última vez em que os dois estiveram a sós. A diferença é que nesta bendita, nesta inexprimível última vez, ela havia sido não só boa, não só inesquecível. Ela havia sido a mulher certa.
Mulherzíssima, com todos os íssimas, onas, udas, todo o resto de terminações que houvesse disponíveis, sobrando espaço ainda para inimagináveis neologismos. Uma taca de mulher, como ele mesmo diria. Sem melindres ou qualquer sorte de frescuras, inteirona lá pra ele, sendo e fazendo tudo numa noite só. Um luxo pra ele até então impensável, uma covardia de mulher.
E curtindo tudo de cara limpa, muito delicada, muito sofisticada, com faces de estar totalmente à vontade com toda aquela anarquia que estava fazendo, uma verdadeira diaba. Ele lá totalmente fulminado, dizimado de prazer, e ela dona da situação, atenta aos mínimos detalhes, minucisa e esmerada feito uma aranha envolvendo o macho em sua teia, para depois devorá-lo.
Era seguramente a mulher mais encantadoramente ousada com quem ele já topara, e durou horas até que ele forjasse na cabeça o desejo de tê-la nua em sua cama, em todas as noites de sua vida.
Mas quedou que agora ela já não lembrava em nada aquela moça que ele trazia consigo, junto à mente. Nada por nada. Parecia sim não fazer a menor idéia do que estava fazendo, contraditória e redundantemente mesmo. Parecia perdida a coitada. Isso, a coitada. Completamente perdida. E ele não pôde deixar de sentir sincera pena dela neste momento, embora já estivesse começando a gostar da ideia de que talvez fosse ele o responsável por desencadear nela toda aquela surpreendente reação.
Pois foi por dó mesmo, e vamos ser honestos, uma pontinha de perversidade, que ele pediu para que ela o aguardasse, que ele chegaria dali a um minuto só. Por precaução e sabe-se lá o que mais, pediu que ela não colocasse mais nenhuma gota de álcool na boca. (CONTINUA)

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